Câmara era uma espécie de prefeitura e juizado em 1800, atestam documentos
Em 1800, o processo para nomeação de ruas era diferente em João Pessoa. As atividades do setor público aglomeravam responsabilidades administrativo-religiosas e as atribuições das câmaras eram mescladas às de uma prefeitura e um juizado. Isso é o que atestam alguns dos 250 documentos históricos encontrados no final de 2017, no arquivo da Câmara Municipal de João Pessoa (CMJP). Entre outros detalhes do cotidiano da população documentados na Câmara, os registros mostram que o ‘almotacer’ era um funcionário público que acumulava funções na Saúde e Infraesrtutura.
Não se tem registro de que, naquela época, a Câmara batizava oficialmente os nomes de ruas, como é feito hoje. As vias geralmente eram denominadas com nomes que simbolizavam um elo de ligação com a igreja, ou eram batizadas de acordo com alguma atividade exercida naquela via, como a função da artéria para a cidade ou alguma característica do local. A esse respeito, os títulos históricos achados na CMJP indicam que as Câmaras acatavam os nomes pelos quais as ruas eram chamadas, ao citar as ruas do Carmo, do Consumo, do Cortume e o Beco do Zumbi.
“Quase todas as atividades da vida municipal eram congregadas na Câmara, um ente que era uma espécie de prefeitura e juizado de 1ª instância ou de pequenas causas. Praticamente quase todos os assuntos mais corriqueiros da vida cotidiana passavam pela Câmara”, observou o historiador Ângelo Emílio Pessoa.
Como acontece atualmente, os documentos da Câmara tinham peculiaridades administrativas no século XIX. Normalmente, as prefeituras são desmembradas em secretarias e diversos órgãos, com departamentos funcionando a serviço da população, numa estrutura complexa. No entanto, até o final do Império e início da República, não existiam prefeituras, nem a maior parte desses órgãos da administração pública, como se percebe no século XXI.
Além disso, havia uma mescla do setor público com a hierarquia religiosa, até porque os padres não só rezavam missas. “A Santa Casa de Misericórdia fazia trabalhos iguais aos de um posto de saúde, que se confundiam com as atribuições de uma secretaria de assistência social, com obras caritativas, assistência em prisões. Então, os padres acabavam sendo também funcionários públicos”, atestou Ângelo Emílio Pessoa.
A figura do ‘almotacer’ e os trabalhos da Câmara em 1800
Aparece nos documentos um alerta do presidente da província à Câmara, citando a urgência de haver o conserto de uma ponte em Gramame, caso contrário seria dificultado o abastecimento de farinha no mercado das ‘tropas pagas’ (trabalhadores) e isso resultaria em confusão. “Naquele momento, a alimentação básica era à base de carne e farinha e, faltando um dos itens na cidade, seria fácil o desencadear de problemas, como de segurança, correndo o risco da população se revoltar, com rebeliões. Então, um dos pesadelos das Câmaras era a falta do abastecimento”, assegurou o historiador.
Traços do trabalhador e do cotidiano da população da época também foram revelados nos manuscritos. Em 18 de setembro de 1827, Francisco Pereira Costa, um presidente de província, falou da conservação das estradas e da Ponte de Mandacaru, via de acesso à Fortaleza de Santa Catarina, em Cabedelo, citando a figura do ‘almotacer’ (palavra derivada do Árabe), um funcionário público que seria uma mistura de encarregado de obras com chefe da vigilância sanitária. “Um detalhe sobre isso é a influência do idioma Árabe na língua portuguesa, com várias palavras, além de ‘almotacer’, como álcool e açúcar”, observou o historiador, fazendo alusão à influência desse povo na Península Ibérica.
Os achados também contam sobre o descarte irregular de lastros de navios no Rio Sanhuá. “Há relatos do presidente da província pedindo que a Câmara tome providências quanto aos navios ingleses, que atiravam lastros no Rio, gerando assoreamento, dificultando a navegação e a pesca. Sobre a pescaria, há citações sobre ‘currais de pescaria’ ilegais, pedindo à Câmara para ir nesses locais coibir a atuação irregular, que resultava na sonegação de impostos”, informou o professor Ângelo Emílio Pessoa.
Em outro documento, observa-se um detalhe de segurança sobre a vigilância e o monitoramento das casas, em que o presidente da província Alexandre Francisco Seixas Machado mandou alerta para a Câmara, falando sobre a proibição do uso de ‘urupembas’ nas portas das casas como algo inadequado. Ele exigia a substituição dos objetos por vidraças. ‘Urupembas’ eram utensílios de treliça, material artesanal entrelaçado, que isolavam o espaço interno do externo através das janelas das moradias. Como eram vazados, possibilitavam que as pessoas de dentro das casas vissem seu exterior e não o contrário.