Morrer com ou morrer de COVID-19? Como os óbitos são contados nas estatísticas de saúde

por Damião Rodrigues publicado 17/09/2020 12h55, última modificação 17/09/2020 12h58

17.09.2020 às 13h

No Brasil tem havido alguma discussão, principalmente nas mídias sociais, e com grande viés político, sobre a contagem de mortos durante a pandemia de COVID-19. Uns argumentam que este número tem sido subestimado, porque existiriam casos não computados por não ter confirmação diagnóstica laboratorial, outros defendem que ele tem sido superestimado porque estariam sendo contados como casos de COVID-19 óbitos por outras causas, mas com exame positivo para o novo coronavírus (SARS-CoV-2). A mesma discussão também tem ocorrido em outros países. Stephanie Pappas, em texto originalmente publicado no website Live Science, e reproduzido no Scientific American, tenta entender se é, de fato, relevante a diferença entre “morrer com” ou “morrer de” COVID-19 [1].

Pappas, que aborda o assunto no contexto dos Estados Unidos, começa sua matéria citando os exemplos dos estados do Colorado, onde um deputado estadual acusa o Departamento Estadual de Saúde Pública de inflacionar as mortes por COVID-19, e da Flórida, onde a mídia local tem criticado a recusa do Departamento Estadual de Saúde em divulgar publicamente dados de examinadores médicos, alegando que aquele estado está subnotificando os óbitos. Segundo a autora, estabelecer a causa de morte de alguém não é algo simples de ser feito, e isso sempre foi um problema e não está sendo uma especificidade da pandemia de COVID-19.

Quem assina os certificados de óbito de onde são extraídas as informações sobre as causas das mortes? Nos Estados Unidos a maioria deles é assinado pelo médico responsável pelo paciente que morre em um hospital, mas há também a possibilidade de isso ser feito por examinadores médicos ou coroners, que seriam como legistas, mas sem ter correspondência exata com esse tipo de profissional no Brasil, e que se responsabilizam pelas mortes extra-hospitalares. Em algumas jurisdições, como nas cidades de Chicago e Milwakee, cabe aos coroners rever os dados clínicos e laboratoriais de todos os óbitos para verificar se de fato foram causados pela COVID-19.

Nos certificados de óbito há espaços para as informações de causa imediata da morte, assim como para a cadeia de eventos que levou a essa doença ou incidente final, e para fatores que possam ter contribuído para o óbito. Num caso de óbito por COVID-19, exemplifica Pappas, a causa imediata de morte pode estar listada como “insuficiência respiratória”, com a informação “devida à COVID-19” escrita na segunda linha. Fatores que podem ter contribuído para a morte, como doença cardíaca, hipertensão arterial ou diabetes, seguem relacionados mais abaixo. Isso leva alguns a interpretar que a causa real do óbito tenha sido doença cardíaca ou diabetes, o que não é correto, pois sem a COVID-19 a pessoa provavelmente não teria morrido naquela ocasião.

Determinar de forma acurada se foi de fato a COVID-19 o fator determinante para o óbito não é tão difícil, segundo alguns, mesmo quando o paciente era portador de comorbidades. Isso porque nos óbitos por COVID-19 predominam os quadros respiratórios, e os achados clínicos, radiológicos e laboratoriais costumam ser marcantes. Porém quando a pessoa morre em casa, ou logo após a entrada no hospital, a determinação do papel do novo coronavírus no óbito pode ser mais complicada. Nesses casos, a realização de uma necrópsia (autópsia) pode ser muito útil, mas o fato é que necrópsias estão sendo cada vez mais raras, algo que precede o surgimento da pandemia, e que em parte se explica pela carência de patologistas forenses nos Estados Unidos. Além disso, autópsias em cadáveres cuja morte pode ter sido causada pela COVID-19 conferem risco para os profissionais envolvidos por se tratar de doença infecciosa, e pela falta de equipamentos de proteção individual para os patologistas que vem ocorrendo durante a pandemia.

Exemplos de situações em que pode ser difícil atribuir uma morte à COVID-19 são casos de mortes em pacientes jovens por infarto ou acidente vascular cerebral, em que os pacientes testaram positivo para o SARS-CoV-2, mas não apresentaram sintomas respiratórios. Hoje sabe-se que a COVID-19 pode evoluir com formação de coágulos mesmo quando o envolvimento pulmonar não é evidente no quadro clínico da doença e, portanto, pode-se concluir que a morte tenha sido por COVID-19, o que não era o caso no início da pandemia, quando esse fato era desconhecido. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos publicou um guia sobre como atribuir a morte à COVID-19, que recomenda a utilização de teste diagnóstico sempre que possível, e que permite classificar as mortes por “presumível” ou “provável” COVID-19, com base na clínica e no julgamento de quem preencher o certificado de óbito. Algumas jurisdições aceitam a realização de testes post mortem para COVID-19.

Inconsistências na notificação de causa de morte precedem em muito a pandemia de COVID-19, mas esta fez com que esse problema aflorasse e se tornasse de interesse público. Muitos estados relutam em abrir suas bases de dados por saber terem elas problemas de validade e por temer o seu mau uso. Tanto erros de contagem para mais como para menos são possíveis, e não está muito claro se eles se compensam ou levam a super- ou subestimativas do número de mortes por COVID-19. De acordo com a matéria de Pappas, dados do CDC de excesso (da ordem de algumas dezenas de milhares) de óbitos nos primeiros meses de 2020 observadas nos Estados Unidos em comparação com o mesmo período de anos anteriores sugerem que esteja havendo naquele país como um todo uma subestimativa do número de óbitos por COVID-19.

Alguns argumentam que o excesso de mortes seria consequência do confinamento e não da COVID-19, com base na hipótese de que muitas pessoas têm morrido em casa por ter medo de ir se consultar em hospitais. Embora queda de atendimentos de emergência por problemas cardíacos, por exemplo, tenha sido documentada, os números observados não sugerem que ela possa por si só explicar o excesso de mortes. E há ainda o fato de que a mortalidade por acidentes automobilísticos e motociclísticos diminuiu bastante no mesmo período, o que dificulta a explicação para o excesso de óbitos observado.

Sérgio de Andrade Nishioka (médico infectologista e doutor em Epidemiologia)

Referência:

1. Pappas S. How COVID-19 deaths are counted. Scientific American, 19 de maio de 2020. (Disponível em https://www.scientificamerican.com/article/how-covid-19-deaths-are-counted1/).


Fonte: https://www.unasus.gov.br/especial/covid19/markdown/282